Chegou ao fim o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. A misericórdia, porém, “não pode se reduzir a um parêntese na vida da Igreja”, como lembrou o papa Francisco na carta apostólica Misericordia et misera, publicada hoje (21/11). O coração do anúncio da Igreja é o amor misericordioso de Deus. Deus é Amor! – não é condenação, não é acusação, não é tirania, não é indiferença. Ele entregou seu Filho, que se despojou inteiramente, para provar isso. Se a Igreja não anuncia isso, não tem mais nada a dizer.
“A misericórdia é o núcleo da mensagem evangélica, é o próprio nome de Deus, o rosto com o qual Ele se revelou na Antiga Aliança e plenamente em Jesus Cristo, encarnação do Amor criador e redentor”, já dizia o papa Bento. Não são apenas palavras bonitas. Sendo o núcleo do Evangelho, é o critério para toda a vida do cristão e da comunidade cristã, o coração que bombeia vida para qualquer outro âmbito da fé cristã. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, Francisco apontou a importância de levar a sério a centralidade da misericórdia e tirar as consequências disso para a vida da Igreja (cf. n. 34-39).
A misericórdia não admite “mas”. Durante o Ano da Misericórdia, e mesmo antes, houve quem se esforçasse por repetir que, “sim, Deus é misericordioso, mas…”, “Deus nos ama, mas…”, como se sublinhar a misericórdia de Deus fosse um risco para a fé cristã – sendo que ela é o conteúdo mesmo dessa fé! O fato, porém, é que ninguém experimenta um amor abundante quando ele é seguido de um “mas”.
O Novo Testamento nos narra diversas experiências que deixam claro que o amor de Jesus, revelador do Pai, não impõe condições. Ele acompanha o coração de Zaqueu, o olha com amor, o privilegia e deseja se hospedar em sua casa antes da conversão do publicano. O mesmo acontece com prostitutas, doentes, mendigos, apóstolos – com todos que cruzam o seu caminho.
Jesus derrama abundantemente o amor de Deus, de forma pessoal e única a cada um, sem o condicionar a nada. Sua pessoa anuncia que cada um é amado, desejado, esperado pelo Deus-Amor – não porque é bom, não porque merece, não porque é digno, mas porque a natureza de Deus é amar. É por isso que chamamos esse amor de “graça”: ele é dado gratuitamente. A única condição – se podemos chamar assim – para o experimentar é querer, desejá-lo, abrir-se a ele.
Isso seria, como dizem alguns, indiferença ao pecado? De jeito nenhum. Pelo contrário, é o verdadeiro remédio para a nossa disposição em fazer o mal aos outros, em não nos importarmos com o próximo, em recusar amar. É precisamente essa experiência de um amor sem limites nem condições que permite a Zaqueu se converter: permite que ele veja que as pessoas que defraudou são também objeto de um amor imenso assim e constate, dessa maneira, o peso do seu pecado.
Um amor com “mas” não salva – e sequer é amor. Fora da experiência da misericórdia sem limites de Deus, não há conversão: pode haver uma mudança de comportamento, uma busca pela própria perfeição, uma idolatria de si mesmo, mas não uma vida transformada em amor, onde Jesus – o rosto da misericórdia do Pai – e o próximo estejam no centro, e não as minhas ideias, as minhas seguranças, o meu progresso espiritual.
Regras, normas, mandamentos, teorias: tudo isso é muito pouco. Não são capazes de nos transformar. Não são capazes de operar aquela revolução na nossa vida na qual saímos nós do centro e quebramos aquela imagem de nós mesmos que gostamos de idolatrar. Amor, isso sim. Entrega, isso sim. Arrependimento, isso sim. Misericórdia, isso sim. A transformação anunciada – e operada – por Jesus é de dentro para fora e começa quando nos deixamos ser olhados por um Deus que não tem nojo da nossa miséria e a cobre de beijos para curá-la.