O papa Francisco esteve no último dia 22 de abril na Basílica de São Bartolomeu, em Roma, onde presidiu uma Liturgia da Palavra em memória dos mártires dos séculos XX e XXI. Desde 1999, por decisão de São João Paulo II, a igreja construída sobre a Ilha Tiberina é dedicada aos “novos mártires” e conserva em seus altares laterais relíquias de mártires contemporâneos de todo o mundo e de diversas confissões cristãs.
Francisco cunhou uma expressão que já repetiu diversas vezes desde sua eleição, há quatro anos: ecumenismo do sangue. “Assim como na Igreja antiga o sangue dos mártires se tornou semente de novos cristãos, também nos nossos dias o sangue de muitos cristãos tornou-se semente da unidade”, disse ele em 2014. O papa parte da ideia de que “aqueles que perseguem Cristo nos seus fiéis não fazem diferenças de confissões: perseguem-nos simplesmente porque são cristãos!”, como disse no mesmo ano.
“Quando estava na Alemanha, tive que ir a Hamburgo fazer um batismo. E o pároco estava organizando a causa de canonização de um padre que foi guilhotinado pelos nazistas, porque ensinava a catequese às crianças. E a dada altura, quando fazia aquele estudo, descobriu que, atrás do tal padre na fila, havia um pastor luterano, condenado à guilhotina pelo mesmo motivo. O sangue de ambos havia se misturado”, contou Francisco em uma entrevista em 2014.
“E este pároco foi ter com o bispo e disse: ‘Eu não avanço com esta causa só para o sacerdote. Ou são os dois ou nenhum!’ Este é o ecumenismo do sangue, que nos ajuda muito, nos diz muito”, continuou o papa, que retomou o tema em várias outras ocasiões.
Nos passos do Concílio
Foi no pontificado do Beato Paulo VI que se começou a ressaltar a dimensão ecumênica que o martírio tomou mais recentemente. Em 1964, ele canonizou um grupo de católicos – São Carlos Lwanga e companheiros – que havia sofrido o martírio junto com cristãos anglicanos na década de 1880. Na homilia, fez questão de sublinhar: “Não podemos esquecer também os outros que, pertencendo à confissão anglicana, enfrentaram a morte em nome de Cristo.”
No mesmo ano, o decreto Unitatis Redintegratio, do Concílio Vaticano II, afirmou, referindo-se aos cristãos não-católicos, que “é digno e salutar reconhecer as riquezas de Cristo e as obras de virtude na vida de outros que dão testemunho de Cristo, às vezes até à efusão do sangue” (n. 4).
Paulo VI também fez referência em duas ocasiões – em 1972 e 1974 – ao mártir da II Guerra Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano, chamando-o de “apaixonado por Cristo”. Além disso, quando Martin Luther King Jr., pastor batista, foi assassinado em 1968, o papa referiu-se ao fato na homilia do Domingo de Ramos. “Uniremos essa lembrança à trágica narração da Paixão de Cristo, que acabamos de ouvir”, disse ele, que no mesmo dia chamou King de “cristão profeta da integração racial”. No ano seguinte, ele recebeu em audiência a viúva do pastor.
Também São João Paulo II se referiu a Bonhoeffer e a King algumas vezes – em uma delas, em uma celebração ecumênica em Paderborn, na Alemanha, falando explicitamente dos “cristãos protestantes, católicos e ortodoxos que, corajosamente e sem medo, deram testemunho da verdade do Evangelho opondo-se a ditaduras totalitárias”.
Por ocasião do Grande Jubileu do ano 2000, o papa polonês presidiu uma celebração ecumênica no Coliseu em memória das “testemunhas da fé do século XX”. Ele já havia dito, na carta Tertio Millennio Adveniente, em 1994, que o martírio havia se tornado, no final do segundo milênio, “patrimônio comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes” (n. 37). Na celebração, disse: “Trata-se de uma herança que fala com uma voz mais alta do que os fatores de divisão. O ecumenismo dos mártires e das testemunhas da fé é o mais convincente, pois indica aos cristãos do século XX a via para a unidade.”
A encíclica de São João Paulo II sobre o ecumenismo, Ut Unum Sint, de 1995, também destacou a questão. “Em uma visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum”, escreveu o papa. “Este inclui também os mártires do nosso século, mais numerosos do que se pensa, e mostra como, a um nível profundo, Deus manteve entre os batizados a comunhão na exigência suprema da fé, manifestada com o sacrifício da vida” (n. 84).
No documento, o papa afirmou ainda que a comunhão entre os cristãos de diversas confissões é imperfeita, mas real; no martírio, porém, alcança a perfeição. Ele acrescentou que também “a realidade da santidade” deve ser vista como patrimônio comum entre as diversas confissões, também no que diz respeito aos cristãos que não sofreram o martírio. “Estes santos provêm de todas as Igrejas e comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação”, escreveu.
Ícone dos novos mártires
As relíquias mantidas em São Bartolomeu são testemunhas eloquentes dessa unidade, representada no ícone que preside a basílica. Pintado por Renata Sciachì, da Comunidade de Santo Egídio, a imagem retrata os mártires das diversas confissões cristãs perseguidos em diversos contextos durante o século XX.
No centro do ícone, está a Bíblia – com a oração de Jesus no Evangelho de João, “Que sejam um” –, a cruz e o círio pascal. À esquerda, os mártires da Igreja do Oriente, e à direita, os da Igreja do Ocidente.
Abaixo da faixa onde se lê “Através da grande tribulação”, trecho do livro do Apocalipse, se vê a cerca de arame farpado de um campo de concentração, transformado em catedral, que reúne católicos, ortodoxos e protestantes martirizados em gulags soviéticos e lagers nazistas. Entre eles, vê-se Bonhoeffer, o patriarca de Moscou Tikhon e, ali perto, o frade franciscano Maximiliano Kolbe.
Mais abaixo vê-se, entre outras figuras, o monge trapista Christian de Chergé, martirizado na Argélia com sua comunidade em 1996. Os edifícios destruídos recordam o genocídio armênio, o primeiro genocídio do século XX, que martirizou muitos cristãos em 1915.
À direita, bem embaixo, reconhece-se o arcebispo de San Salvador, Oscar Romero, morto a mando da ditadura em seu país enquanto celebrava a missa. Ao seu lado, podem-se ver figuras como Martin Luther King Jr. e o padre siciliano Pino Puglisi, assassinado pela máfia. Um pouco mais acima, vemos cristãos sendo julgados, humilhados e executados.
À esquerda, na parte inferior, está representado o gulag das ilhas Solovki, que operava em um antigo monastério. Os dois bispos que levam um carrinho de mão remetem a um testemunho de uma sobrevivente do campo, que conviveu com um bispo católico jovem e um bispo ortodoxo idoso que sempre trabalhavam juntos no campo de concentração, de modo que o mais novo ajudasse o ancião.
Mais acima, sobre a prisão, representam-se os cristãos que nunca deixaram de praticar as obras de misericórdia, mesmo na perseguição – um deles aparece até mesmo acolhendo um perseguidor, mostrando a vivência do perdão.
Os seis altares laterais que expõem as relíquias na basílica estão categorizados da seguinte maneira: África, América, Europa, Ásia e Oceania, nazismo e comunismo. Entre os objetos, uma carta do leigo católico Franz Jägerstätter, martirizado pelo nazismo; o breviário do padre francês Jacques Hamel, morto em 2016 por extremistas islâmicos; e o báculo do cardeal mexicano Juan Jesús Posadas Ocampo, morto por narcotraficantes em 1993.
Em Westminster
Outra iniciativa parecida, que ressalta a dimensão ecumênica do martírio contemporâneo, são as estátuas dos mártires do século XX da Abadia de Westminster, um dos edifícios mais célebres da Igreja Anglicana, em Londres. Desde 1998, dez imagens preenchem nichos externos do edifício que estavam vazios desde a Idade Média.
Além dos já citados Maximiliano Kolbe, Oscar Romero, Martin Luther King Jr. e Dietrich Bonhoeffer, estão retratados Esther John, evangelizadora presbiteriana paquistanesa morta em 1960; Janani Luwum, arcebispo anglicano morto em 1977, em Uganda; Wang Zhiming, pastor protestante chinês assassinado em 1972; Lucian Tapiedi, leigo anglicano de Papua-Nova Guiné morto em 1941; a princesa ortodoxa Elizabeth da Rússia, assassinada pelos bolcheviques em 1918; e Manche Masemola, uma jovem catecúmena anglicana morta pelos próprios pais em 1928, na África do Sul.