A Igreja sempre foi muito sábia em deixar claro – pelo menos na teoria, já que na prática pastoral nem sempre é assim – que as revelações privadas são algo completamente diferente da Revelação cristã, ou “revelação pública”. Essas revelações privadas – visões ou aparições, como é costume chamá-las – “não pertencem ao depósito da fé” nem têm o objetivo de “aperfeiçoar” ou “completar” aquela Revelação que se deu de modo definitivo em Cristo (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 67).
O documento A Mensagem de Fátima, que a Congregação para a Doutrina da Fé publicou no ano 2000, reafirma essa doutrina. Não se deve dar às revelações privadas a mesma fé que colocamos em Deus e em sua Palavra, mas apenas, no máximo, “uma adesão de fé humana, ditada pelas regras da prudência” – citando as palavras de Prospero Lambertini, o papa Bento XIV, uma autoridade no assunto.
O documento diz ainda, recorrendo ao teólogo Edouard Dhanis, que a aprovação que a Igreja dá a alguma dessas revelações significa apenas “que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão”. Ou seja, a aprovação eclesial não diz que tal aparição é “verdadeira”; reserva-se a dizer que, se bem compreendida, a aparição não causa dano à fé.
Tudo isso se aplica a diversos eventos ocorridos nos últimos séculos, entre os quais, por exemplo, as visões de Santa Faustina Kowalska sobre Jesus Misericordioso nas décadas de 1920 e 1930 e as de Santa Jacinta, São Francisco e Lúcia em Fátima – que completaram 100 anos neste ano. Se levarmos a sério o que a Igreja diz, devemos reconhecer que: essas revelações privadas, sendo verdadeiras ou não, nada acrescentam à fé cristã; nenhuma interpretação do seu conteúdo pode suplantar o que diz o Evangelho; e é imprudente basear a nossa visão de mundo, a nossa postura e a vivência da nossa fé no seu conteúdo.
Fátima
Tendo isso em mente, nenhum católico deveria ter receio de ler um livro como Fátima: milagre ou construção, da jornalista portuguesa Patrícia Carvalho. Solidamente fundamentado com base na Documentação Crítica de Fátima, uma publicação do próprio Santuário de Fátima, o livro revela alguns aspectos interessantes da história das aparições que o vilarejo português testemunhou entre maio e outubro de 1917.
A começar pela aparência de Maria, segundo contada por Lúcia e Jacinta: “Uma mulher pequena”, “vestida com meias brancas e fato todo dourado; não trazia sapatos; a saia era branca e toda dourada e dava-lhe pelos joelhos”, “casaco branco todo dourado; um manto pela cabeça branco e todo dourado”; na versão de Lúcia, brincos como “botões muito pequeninos e muito chegados às orelhas” – na de Jacinta, não usava brincos. As aspas remetem às palavras do próprio pároco de Fátima, Manuel Marques Ferreira, que entrevistou as crianças logo em seguida às aparições.
Pode ainda ser um pouco constrangedor saber que o bispo de Leiria, dom José Alves Correia da Silva, ordenou a compra de terrenos e a elaboração de um projeto para o santuário antes de abrir o inquérito diocesano sobre as aparições; que o cônego Manuel Nunes Formigão, um dos principais responsáveis pela propagação da devoção, era um homem obcecado por ter em seu país um santuário como o de Lourdes, por acreditar que a ele se devia a “recristianização da França”, conforme escreveu; e, ainda, que a mãe de Lúcia lia com frequência à filha uma espécie de catecismo popular chamado “Missão Abreviada”, que continha, entre outras coisas, o relato detalhado das aparições de Maria em La Salette, na França – com termos muito semelhantes à descrição que Lúcia faz das aparições.
Mais importante ainda é ter em conta o fato de que aquilo que se conhece hoje como a segunda e a terceira parte do “segredo” de Fátima – isto é, as partes mais polêmicas, que mencionam a necessidade de que a Rússia se converta e a procissão de mártires encabeçada pelo papa – não data de 1917. Inicialmente tema de visões que Lúcia relata ter tido já quando era freira, a Rússia só passou a fazer parte da história das aparições em 1941, quando a vidente redigiu sua terceira memória. O momento na Europa era de plena guerra mundial e em Portugal o anticomunismo era crescente.
Visões
Essas informações não necessariamente desacreditam Fátima, mas colaboram certamente para colocá-la em seu devido lugar e dar-lhe a importância que lhe é devida – nem mais, nem menos. Nesse sentido, é fundamental ater-se ao que o comentário teológico do então cardeal Joseph Ratzinger, no documento A Mensagem de Fátima, explica a respeito da natureza das revelações privadas.
Ratzinger usa sempre o termo “visão”, e não “aparição”, para se referir a acontecimentos como os de Fátima e Lourdes. Trata-se de uma “percepção interior”, ainda que não “se trate de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjetiva”. Ratzinger diz que, nessas visões, “a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos ‘sentidos internos’. Trata-se de verdadeiros ‘objetos’ que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual”.
Essa “visão interior” de “verdadeiros ‘objetos’” tem, porém, suas limitações. O sujeito influencia no modo como vê essas realidades: ele “vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece”.
Desse modo, “a imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não são em caso algum a ‘fotografia’ pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende”, explica Ratzinger. A pergunta sobre se uma “aparição” é “verdadeira” muda, assim, de rosto. “Poderíamos dizer que as imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe”, sintetiza Ratzinger.
Mistério
Curiosamente, é nessa linha que pode ser interpretado o singelo romance Em teu ventre, do português José Luís Peixoto, que busca recontar literariamente a história das aparições. Nesse livro de 2015, Lúcia é apresentada como uma menina cheia de imaginação; Maria, como o mistério da maternidade, da beleza e da esperança; e Deus como aquele Mistério último que se deixa entrever pelo olhar carregado de sensibilidade.
“A vasilha mede-se pala capacidade, assim é também o entendimento”, põe Peixoto nos lábios de Deus. “Viver é acreditar que se vive. Aqueles que vivem acreditam em países onde nunca foram, em doenças de que nunca padeceram e, tarde ou cedo, acreditarão na morte. Há tantas mortes quantos os olhares e as consciências. Cada um morrerá da morte em que acredita. O amor serve para o mesmo exemplo: cada um só será capaz de dar e receber o amor em que acredita. É por isso, mãe, que és concreta, mesmo que sejas multiplicada por cada um. Para cada coração, terás um rosto próprio, essa será a medida justa”.
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