Dando prosseguimento às reflexões sobre o discernimento vocacional com base no documento preparatório da próxima assembleia do Sínodo dos Bispos, gostaria de comentar aqui o ponto do texto em que se fala especificamente sobre como “funciona” o discernimento.
É claro que “funcionar” não é o termo mais adequado, pois o discernimento é um dom. É um dom, porém, que se desvela na nossa resposta generosa, sábia e humilde ao amor de Deus. O documento diz que o discernimento vocacional é “o processo pelo qual a pessoa chega a realizar, em diálogo com o Senhor e escutando a voz do Espírito, as escolhas fundamentais, começando pela do estado de vida”.
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O texto sublinha um dado fundamental: “O Espírito fala e atua através dos acontecimentos da vida de cada um, mas os eventos em si mesmos são mudos ou ambíguos, já que podem ter diferentes interpretações”. É justamente aqui que entra o discernimento. Simplesmente “absorver” os sinais de forma irrefletida, admitindo como verdade a primeira sugestão que vem à mente ao nos deparamos com um ou mais “sinais”, não é discernimento.
Simplesmente “absorver” os sinais de forma irrefletida não é discernimento.
O documento propõe então um itinerário marcado por três passos: reconhecer, interpretar e escolher. Reconhecer significa estar atento e vigilante aos efeitos que as minhas experiências geram em minha interioridade. As pessoas que encontro, as coisas que me acontecem, aquilo que leio ou escuto – o que cada uma dessas experiências me traz? Alegria? Medo? Vazio? Esperança? O que me atrai? O que me repele?
Esse é apenas um primeiro passo, mas muitas vezes nos detemos aí. É necessário um segundo passo: interpretar. Por que presenciar tal cena me causou alegria? Por que ouvir tais palavras da Bíblia me causou desalento? O que esses sentimentos revelam sobre mim? Qual a raiz deles?
Se me emociono ao encontrar uma comunidade de religiosas, é porque esse é meu chamado ou porque não aguento mais meus pais e quero sair de casa? Se desejo ser padre, é porque quero com humildade servir as pessoas ou porque acho que nenhum padre está fazendo as coisas direito, então vou mostrar para eles como é ser um padre de verdade? Se considero que sou chamado ao matrimônio, é porque estou disposto a ser sinal do amor de Deus para o outro ou porque estou apaixonado?
É preciso uma consciência muito viva das próprias inclinações negativas, que poderiam esconder, sob a aparência de uma decisão heroica, a busca da exaltação da própria imagem.
É preciso, enfim, ir além dos aparentes “sinais” e perguntar-se: o que estou sentindo é realmente um chamado a uma vocação específica? Ou é fruto de algum condicionamento social ou psicológico? Pode ser até mesmo reflexo da minha imaturidade no confronto com a minha própria fé e representar, em vez de um passo de abertura à vontade de Deus, uma fuga daquilo que Deus realmente me pede.
Esse segundo passo, o da interpretação, é, por isso, o mais delicado. Exige paciência e uma consciência muito viva dos próprios limites e das próprias inclinações negativas, que poderiam esconder, sob a aparência de uma decisão heroica, uma rendição ao comodismo ou à exaltação da própria imagem. É preciso ser muito sincero consigo mesmo. Nisso, é de fundamental importância o confronto com a Palavra de Deus e com a própria realidade ao nosso redor, bem como a ajuda de uma pessoa “experiente na escuta do Espírito”, como diz o documento.
Depois de estar consciente desses fatores, é possível, então, dar o terceiro passo: escolher. Se fomos sinceros no nosso discernimento, não é preciso ter medo de tomar decisões. Não significa que, depois de realizada a opção, já não haja mais nada para reconhecer e interpretar: os três passos estão sempre presentes e se compenetram. Depois de tornar concreta a nossa decisão, é preciso continuar a interpretar a nossa experiência para confirmá-la ou revisá-la.