A inviolabilidade da vida humana e as ideologias que mutilam a fé
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A falsificação da fé através da ideologia é um tema recorrente nos discursos do Papa Francisco. A recém-publicada exortação apostólica Gaudete et Exsultate também trata do tema. Em um trecho que tem por subtítulo “As ideologias que mutilam o coração do Evangelho” (n. 100-103) – Francisco não poderia ter sido mais direto e preciso ao nomear essa seção –, o papa fala de dois erros em que os cristãos podem cair quando submetem sua fé a bandeiras ideológicas.

Um deles acontece quando “se transforma o cristianismo numa espécie de ONG”, deixando em segundo plano a espiritualidade – isto é, a relação pessoal com Deus. Dessa maneira, o serviço ao próximo fica privado de sua fonte, de seu coração, que é a experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo, rosto da misericórdia do Pai. Mas o papa alerta também para outro problema: “É nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista”.

Francisco sublinha um ponto muito interessante: essa postura mencionada também é ideológica. Ele está dizendo algo óbvio, mas que muitas vezes nós não reconhecemos: a fé pode ser ideologizada tanto à “esquerda” quanto à “direita”, tanto de forma “progressista” quanto de forma “conservadora” – ou, como ele dizia ainda antes de ser papa, “uns, em uma oficina de restauros; outros, em diferentes laboratórios de utopias”.

Na exortação, Francisco exemplifica de modo muito claro o que significa uma fé que não se submete a ideologias: “A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e em todas as formas de descarte”.

Ou seja, quando nós, cristãos, nos obsessionamos pelo combate ao aborto, mas permanecemos completamente indiferentes – ou até mesmo irônicos – em relação a outras problemáticas sociais que também ferem a vida humana, é preciso identificar aí um sinal de alerta: talvez estejamos agindo não a partir da nossa fé, mas de uma bandeira ideológica.

Fé X ideologia

Causas ideológicas fazem com que nos preocupemos diante de ameaças a postulados que defendemos. Elas concentram o nosso olhar em ideias, em prescrições, em esquemas. Mas a atitude que brota da fé é diferente: ela vê, antes, as pessoas. “A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver” (LF 18). O coração que se deixa transformar pelo amor redentor do Pai torna-se um coração de filho, um coração como o do Filho, que enxerga a preciosidade absoluta de cada pessoa, a sua dignidade inviolável, e sofre quando vê o irmão que sofre.

Para quem enxerga essa preciosidade também no nascituro, preocupa que o aborto seja um negócio que mata todos os anos mais de 650 mil bebês só nos Estados Unidos. Mas se enxergamos com os olhos de Cristo a cada pessoa, não nos entristece igualmente que no Brasil a cada hora sejam reportados 5 casos de violência física ou psicológica contra crianças? Que seja notificado um caso de estupro a cada 11 minutos? Que 816 mil famílias morem em habitações improvisadas ou de material inadequado? Que 11,8 milhões de brasileiros ainda sejam analfabetos? Que a cada 19 horas uma pessoa LGBT seja morta em crimes motivados pela homofobia? Que mais de 43 mil trabalhadores tenham sido resgatados de condições análogas à escravidão desde 2003? E que as seis pessoas mais ricas do Brasil concentrem a mesma riqueza que as 100 milhões de pessoas mais pobres do país?

Quando fazemos da defesa do nascituro uma causa ideológica, nada disso nos comove nem nos indigna. Talvez sejam fatos que momentaneamente chamem a nossa atenção, mas permanecem fora do nosso radar, como se aí não se desvelasse também uma cultura da morte, que pisa na dignidade de cada pessoa. A fé nos revela que cada pessoa que faz parte das estatísticas citadas acima – a jovem estuprada, a criança negligenciada em suas necessidades básicas, a família que não conseguiu mais pagar o aluguel e teve que ir para a rua, a travesti espancada até a morte, o trabalhador que viajou quilômetros atrás de uma promessa de trabalho e encontrou a escravidão – é um rosto amado, esperado, desejado intensamente por Deus.

“Deus nos ama de um modo que poderíamos classificar ‘obstinado’, e envolve-nos com a sua ternura inesgotável”, como dizia Bento XVI. É por isso que o mandamento do amor a Deus e o do amor ao próximo são indissociáveis – são “irmãos gêmeos”, segundo a expressão de João Paulo I. “No meio da densa selva de preceitos e prescrições, Jesus abre uma brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de Deus”, diz Francisco na exortação (n. 61).

A túnica inconsútil

Por isso, o papa afirma: “Alguns católicos afirmam que a situação dos migrantes é um tema secundário relativamente aos temas ‘sérios’ da bioética. Que fale assim um político preocupado com os seus sucessos, talvez se possa chegar a compreender; mas não um cristão, cuja única atitude condigna é colocar-se na pele do irmão que arrisca a vida para dar um futuro aos seus filhos” (n. 102). Esta é a ligação entre aquilo que é verdade de fé, conteúdo da Revelação, e as suas implicações éticas: o olhar que a fé nos dá e que nos permite identificar o outro como irmão.

“Se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará iluminado; mas se teu olho estiver doente, todo teu corpo ficará escuro” (Mt 6, 22-23). É o olhar que nos faz agir diferente e defender a vida do nascituro e a vida do refugiado, a vida do enfermo e a vida da prostituta, a vida do presidiário e a vida do travesti, a vida do socialista e a vida do reacionário, a vida de Alfie Evans e a vida de Marielle Franco. “Pró-vida” não deveria ter outro significado: trata-se de defender pessoas – todas as pessoas – e não ideias, porque a fé nos desvela o valor de cada rosto.

Eileen Egan, Dorothy Day e Santa Teresa de Calcutá. Eileen Egan, Dorothy Day e Santa Teresa de Calcutá.

Essa concepção mais ampla e autêntica de “pró-vida” recebeu uma nomenclatura interessante nos Estados Unidos – onde o sistema bipartidário aguça as polarizações e facilmente ilude com uma visão binária da realidade: seamless garment, ou túnica inconsútil, expressão cunhada em 1971 pela ativista católica Eileen Egan (1912-2000). Também chamada de consistent ethic of life, essa postura foi defendida veementemente nos anos 1970 e 1980 pelos cardeais Humberto Sousa Medeiros (1915-1983) e Joseph Bernardin (1928-1996).

Não se trata de achatar todas as questões éticas como se tivessem o mesmo peso – a isso o cardeal Gerhard Ludwig Müller chama de uma “paródia” da túnica inconsútil. A proposta é enxergar de modo mais amplo e interconectado as questões que dizem respeito à dignidade da vida humana, dando-se conta da coerência interna entre as diversas posturas que o olhar da fé nos exige. As diferentes ameaças à vida “não podem ser fundidas como um só problema, mas precisam ser confrontadas como partes de um padrão mais amplo”, dizia Bernardin.

Comunhão

Diante disso, é preciso que dentro da Igreja saibamos reconhecer com gratidão o trabalho que cada grupo faz em favor da dignidade humana. “Uma ética consistente não diz que todos na Igreja precisam fazer tudo, mas diz, sim, que os indivíduos e grupos que se dedicam a uma questão – seja o combate ao aborto ou à pena de morte – precisam se opor a essas ameaças de uma forma que esteja ligada ao apoio a uma visão sistêmica da vida”, defendia Bernardin. É preciso “cultivar uma conexão consciente e explícita entre as diversas questões”.

O cardeal Joseph Bernardin. O cardeal Joseph Bernardin.

Com essa consciência, não deveria ser difícil que grupos que se concentram na defesa do nascituro – que fazem um belíssimo trabalho em casas de acolhida de gestantes, por exemplo – reconhecessem também a beleza do serviço dos grupos que acompanham os refugiados, os sem-teto e as comunidades indígenas e defendem os seus direitos – e vice-versa. São João Paulo II, por exemplo, ao mesmo tempo em que denunciava o mal do aborto, defendia a reforma agrária e o fim da pena de morte. O mesmo se pode dizer de Bento XVI e Francisco.

A bandeira ideológica, de esquerda ou de direita, só se presta à manipulação. Temos visto em todo o mundo políticos da direita e da esquerda hábeis em conquistar votos instrumentalizando tanto a defesa do nascituro quanto a defesa dos pobres. Evitemos essas armadilhas que nos colocam a serviço de interesses escusos ou da divisão no seio da Igreja e da sociedade, sendo simples, sinceros e apaixonados em nossa fé – não em nossa adesão ideológica a alguns conceitos, mas em nossa acolhida ao mistério de Deus-Amor.

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