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Em fevereiro, completam-se cinco anos da renúncia do papa Bento XVI. 2018 também marca os 50 anos da publicação de Introdução ao cristianismo, obra que tornou Joseph Ratzinger um teólogo renomado. É um tempo oportuno para revisitar o legado de Ratzinger como teólogo, muito mais rico, fecundo e surpreendente do que a imagem conservadora que tanto seus admiradores quanto seus opositores tentam perpetuar. Esta série de textos abordará algumas das principais obras da carreira do Ratzinger teólogo, publicada entre as décadas de 1960 e 2000.

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“O cristianismo, em última instância, não é nem cultura nem civilização; nem uma ideologia, nem a solução dos problemas da humanidade. Tampouco é, em sua essência, propriamente uma ‘religião’, e sim a crise de todas as religiões em Cristo”. Essa frase do teólogo protestante alemão Ernst Wolf (1902-1971) é citada por Joseph Ratzinger em A fraternidade cristã (Die christliche Brüderlichkeit, 1960; sem edição em português), o primeiro livro que o jovem teólogo publicou após dois textos relacionados à sua tese de doutorado: Povo e casa de Deus na doutrina de Agostinho sobre a Igreja e A teologia da história de São Boaventura.

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Ratzinger – que tinha apenas 30 anos quando, em 1958, pronunciou as conferências recolhidas no livrinho – comenta a frase de Wolf: “Esse é realmente um aspecto do cristianismo que não se pode marginalizar. Como radical dissolução de fronteiras, o cristianismo põe constantemente em crise todas as distinções externas, inclusive as distinções realmente existentes dentro da própria Igreja, obrigando-nos a purificá-las renovadamente a partir de dentro e a vivificá-las com o mesmo espírito de fraternidade que nos fez chegar a ser um só indivíduo (cf. Gl 3, 28) em Cristo Jesus” (p. 85).

No livrinho, Ratzinger aborda a seguinte questão: uma vez que a fé cristã forma uma fraternidade – os cristãos se tornam irmãos pelo renascimento na fé e no batismo –, qual a relação que se estabelece entre essa comunidade de irmãos e as pessoas que não fazem parte dela? Em outras palavras: se a fé derruba muros e nos torna irmãos, não é contraditório que ela estabeleça ao mesmo tempo um outro muro, isto é, entre os que creem e os que não creem? Por que a fraternidade parece criar duas zonas éticas, a de dentro e a de fora?

De fato, segundo Ratzinger, “o mistério de Cristo é o mistério da supressão dos limites” (p. 78): no evento da salvação, caem por terra as diferenças entre judeu e gentio, servo e livre, mulher e homem. Diferenças sociais, nacionais, religiosas e hierárquicas são suprimidas. “Só uma diferença fica em pé: entre o Criador e a criatura. Diante dela, todas as demais desaparecem” (p. 79), escreve o atual papa emérito. Ratzinger ousa até mesmo perguntar: “Será que a realidade atual e concreta de nosso cristianismo não se parece muito mais com o culto ao hierarquismo criticado por Jesus do que com a imagem que ele traçou de uma comunidade de irmãos?” (p. 80).

O teólogo reconhece que a fé delimita um círculo interno e um círculo externo. Ratzinger critica a ideia de filantropia universal do iluminismo, considerando-a ilusória: “A fraternidade ampla demais se torna irreal e vazia de sentido” (p. 30), diz. Ao mesmo tempo, critica a concepção marxista de fraternidade, que não vê problemas na delimitação de duas zonas éticas, vendo na luta dialética entre capitalistas e proletários a essência da história. Segundo essa lógica, “a fraternidade com uns implica a inimizade com outros” (p. 32). Não é essa a lógica cristã – embora muitos cristãos vejam dessa forma os que estão fora.

Para Ratzinger, a fé cristã é portadora do “verdadeiro universalismo”: “O estabelecimento de limites para a fraternidade cristã não tem por fim criar um círculo esotérico com um fim em si mesmo, e sim facilitar o serviço da totalidade. A comunidade cristã não está contra o todo, e sim para o todo” (p. 97), diz ele. “O verdadeiro objetivo da obra de Jesus não se dirige à parte, mas ao todo: ao conjunto da humanidade”. Nessa lógica, “os poucos são o fermento de que Deus quer se servir para salvar aos muitos” (p. 98), explica.

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Inversão paradoxal

Segundo Ratzinger, ninguém expôs essa “dialética soteriológica” com tanta clareza quanto o teólogo calvinista suíço Karl Barth (1886-1968). Em Cristo, acontece uma inversão paradoxal: “O único justo e, portanto, o único eleito por ser o único digno de eleição, Cristo, se torna réprobo, carrega sobre si o destino de reprovação de todos. Dessa forma faz de nós, em seu lugar e através dele, eleitos, assim como ele se fez, em nosso lugar e através de nós, réprobo”, explica Ratzinger (p. 99-100).

Essa lógica que se verifica em Cristo acontece em toda a história da salvação, como explica Ratzinger, citando a leitura que o teólogo católico suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988) faz de Barth: “Sempre o eleito é eleito em função do não-eleito, cuja não-eleição o eleito deverá suportar vicariamente em seu destino, de tal forma que, na verdade, o não-eleito é o eleito e o eleito é o não-eleito” (p. 100). Portanto, em Cristo, a contraposição entre os de fora e os de dentro é relativizada: eleitos e réprobos “não só se contrapõem, mas se justapõem e existem uns para os outros” (p. 102), diz von Balthasar.

Esse “sistema de representações” encontra “sua expressão conjunta na contraposição entre igreja e não-igreja”, escreve Ratzinger. “A Igreja, enquanto tal, é aquela que encarna essa predestinação vicária; sua missão suprema consiste em fazer de si reprovação vicária” (p. 102-103). “A atitude da Igreja, como comunidade eleita, não pode ser de isolamento em relação à não-igreja, ao não-povo. A eleição é sempre, em seu sentido mais íntimo, eleição para o outro; isto é, sempre diz respeito ao outro”, diz o teólogo.

Para Ratzinger, a fraternidade entre os cristãos forma um só corpo. Mas esse corpo é, ao mesmo tempo, o corpo de um irmão: “A Igreja jamais deve esquecer o simbolismo da parábola: não é um só o filho do pai, e sim dois, e junto a um irmão está o outro irmão, cuja missão não é condenar o irmão que erra, e sim salvá-lo” (p. 103), diz ele. A Igreja precisa assim de uma forte fraternidade interior, para desempenhar com maior eficácia sua missão de “ser-para” os demais irmãos, os que estão fora.

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Serviço à humanidade, missão da Igreja

E como a Igreja se entrega pela humanidade? O teólogo elenca três formas de serviço. A primeira é a missão/evangelização: “Dar testemunho público diante do rosto do mundo da obra de salvação que Deus levou a cabo”, define Ratzinger. Ao mesmo tempo, porém, alerta: é uma missão que se realiza “não tentando cooptar os seres humanos traiçoeiramente com palavras, nem se servindo da magia da sugestão ou dos artifícios da oratória, e sim de forma que se deem conta plenamente, anunciando com simplicidade a obra de Deus e sua vontade de salvação”. Em outras palavras, “não é o que mais fala o que melhor prega o Evangelho, mas sim o que o vive e o comunica então como uma vida” (p. 106).

A segunda forma de serviço é a prática da caridade. “O cristão deve praticar a caridade com todos os que precisam dele, sem esperar correspondência ou agradecimento. Todo necessitado, independentemente de suas ideias ou sentimentos, é, pelo mero fato de ser necessitado, irmão de Cristo – mais ainda, uma manifestação do próprio Senhor (cf. Mt 25, 31-46)”, defende Ratzinger. “Sempre que uma pessoa, ao contemplar a miséria do próximo, sente as suas entranhas comoverem-se de caridade, se verifica uma autêntica ‘parusia’ do Senhor” (p. 107).

A terceira forma através da qual os cristãos servem aos não-cristãos é o sofrimento. “Quando todos os outros meios fracassam, ainda resta o caminho real do sofrimento corredentor ao lado do Senhor. Precisamente quando morre, a Igreja celebra sua suprema vitória, estando estreitamente unida ao Senhor. E por seu próprio sofrimento, ela realiza sua mais alta missão: a permuta de destino com os irmãos que se desviaram, para lhes devolver a filiação e a plena fraternidade” (p. 108-109). Quando a palavra e a caridade são rejeitadas, o cristão não cai na indiferença: permanece ligado ao outro pela compaixão.

É na relação entre “poucos” e “muitos” que se manifesta a verdadeira catolicidade da Igreja. “Pelo número de seus membros, a Igreja jamais será totalmente ‘católica’, ou seja, universal. Aliás, ela nunca passará de um pequeno rebanho”, escreve Ratzinger. “Mas com sua caridade e seu sofrimento, a Igreja está sempre para ‘os muitos’, para todos. Com seu amor e sofrimento, ela ultrapassa todas as fronteiras, sendo em verdade ‘católica’” (p. 109).

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“Poucos são os discípulos de Jesus. Mas assim como Jesus, sendo um só, se entregou ‘por muitos’, também a missão dos seus discípulos é entregar-se ‘por muitos’: não estar contra eles, mas sim para eles” (p. 108), conclui Ratzinger.

A sua visão deixa claro que a expectativa do cristão não deve ser a adesão de toda a humanidade à fé cristã: isso não acontecerá. Mas isso não significa que a porta da salvação não esteja aberta a todos, porque a salvação não se identifica com a pertença institucional à Igreja. Lavando os pés da humanidade – tão eleita e tão não-eleita quanto a Igreja –, a comunidade dos discípulos a toca com o amor que recebeu em Cristo e, assim, coopera para integrar a todos no desígnio da salvação – a comunhão com Deus-Amor.

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Os números de páginas fazem referência à edição espanhola, La fraternidad cristiana, publicada em 1962 pela editora madrilenha Taurus. Todos os negritos são nossos.

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