A noção da existência do purgatório, entendido de maneira geral como uma condição intermediária entre esta vida e o nosso destino definitivo, é uma das diferenças entre católicos e evangélicos. Como se isso não bastasse, mesmo para os católicos a compreensão do que seja o purgatório é confusa. Um estado de espera enquanto Deus não se decide para onde vamos? Um inferno temporário onde somos castigados pelo mal que fizemos? O que, afinal, é o purgatório, segundo o ensinamento da Igreja?
O papa Bento XVI fala sobre isso em sua segunda encíclica, Spe Salvi, de 2007. Ali, ele repete um raciocínio que já havia exposto antes de ser eleito papa no livro Deus e o mundo, de 2001. Bento analisa os traços da opção de vida que cada um realizou e que, na morte, se torna definitiva. A conclusão dele é que podem ser pouquíssimas as pessoas que vão para o inferno ou diretamente para o céu.
“Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste gênero. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra inferno”, escreve o papa Bento.
“Por outro lado, podem existir pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar inteiramente por Deus e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já são” – seria o caso de quem, ao morrer, vive já o céu.
Aqui entra o cerne da questão: “Mas, segundo a nossa experiência, nem um nem outro são o caso normal da existência humana. Na maioria dos homens – como podemos supor – perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, aquela é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda a abjeção e continua presente na alma. O que acontece a tais indivíduos quando comparecem diante do Juiz?”
Salvos através do fogo
Bento recorre a um trecho da Primeira Carta aos Coríntios em que São Paulo diz: “Se alguém edifica sobre este fundamento com ouro, prata, pedras preciosas, madeiras, feno ou palha, a obra de cada um ficará patente, pois o dia do Senhor a fará conhecer. Pelo fogo será revelada, e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obra construída subsistir, o construtor receberá a paga. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá a perda. Ele, porém, será salvo, como que através do fogo” (3, 12-15).
A partir daí, o papa explica que São Paulo usa essas imagens para tentar exprimir aquilo que não conseguimos transformar em conceitos. O fogo, no purgatório, é um símbolo. Mas símbolo de quê? “O fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador”, diz Bento. “O encontro com Ele é o ato decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos.”
É esse encontro, que se dá na morte mesma, que a tradição chamou de purgatório. É um “momento” transformador, que foge da contagem do nosso tempo. É a nudez de si mesmo diante do fogo do olhar misericordioso de Cristo, que nos revela a verdade da vida e purga – purifica, queima – tudo o que restou de egoísmo e vaidade no nosso coração, tornando-nos prontos para viver em plenitude a comunhão de amor com Deus e com os outros – o céu.
“É o encontro com Cristo que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos.”
Diante do olhar de Jesus, “as coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa ‘como pelo fogo’. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus.”
O sofrimento do purgatório não é, pois, uma pena arbitrária que corresponde ao mal que fizemos, um castigo ou uma necessidade jurídica que Deus tem de não deixar nenhum ato mau passar impune. A partir do que Bento XVI diz, podemos comparar esse sofrimento com o sofrimento que experimentamos quando nos deparamos com a nossa própria miséria. É a dor de vermos o quanto nos gastamos em coisas que eram apenas “palha”, a dor de compreender de maneira mais profunda o mal que geramos no mundo com o nosso egoísmo, a dor de se dar conta de que tentamos construir nós mesmos, inutilmente, a nossa própria salvação.
Essa dor verdadeiramente nos purificará, e não apenas de forma arbitrária, como uma mágica. Diante do olhar de Cristo, diante de suas chagas abertas, poderemos enfim nos libertar de toda pretensão e nos entregar completamente à misericórdia de Deus, compreendendo que a salvação é graça. “O nosso modo de viver não é irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos continuamos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor. No fim de contas, esta sujeira já foi queimada na Paixão de Cristo. No momento do Juízo, experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós. A dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria”, escreve Bento.
Em Deus e o mundo, o então cardeal Ratzinger diz ainda que não importa o nome como descrevamos essa realidade: o fato é que todo cristão crê que Deus é capaz de salvar quem não vive ainda uma existência toda de amor. “Deus é capaz de recolher os pedaços”, diz Ratzinger. O olhar purificador de Cristo no momento da nossa morte – o chamemos de purgatório ou não – é um gesto da misericórdia de Deus, que, apesar das nossas rachaduras e trincas, não desiste de nós.