Há cinco anos, Jorge Mario Bergoglio se tornou Francisco. Foi uma surpresa, e continua sendo. A quem soube se abrir às surpresas do Espírito, o ensinamento do Papa Francisco é simultaneamente tecido de alegrias e de desafios. “Há um novo frescor no seio da Igreja, uma nova alegria, um novo carisma que se dirige aos homens”, reconheceu o próprio papa emérito Bento XVI, no livro-entrevista O último testamento. Você confere aqui cinco pontos-chaves do pontificado de Francisco que sintetizam a sua sólida, vigorosa e peculiar contribuição para a vida da Igreja.
1. O discernimento
Na verdade, eu colocaria a ênfase que Francisco dá ao discernimento nos cinco itens desta lista. Com esse tema (que não é invenção sua, mas uma sólida herança da Escritura, dos Padres da Igreja e de grandes mestres como Inácio de Loyola), Francisco coopera para ressituar a moral na vida cristã, dando traços concretos àquilo que seus predecessores repetiram incansavelmente: que a fé não é um conjunto de regras ou uma proposta moral, mas um encontro pessoal com Jesus Cristo. “A moralidade é sempre uma consequência”, como sublinhou Francisco. Na vida cristã, trata-se de agir segundo o Espírito e para isso as normas são insuficientes. Só o discernimento custodia o nosso caminho de fé para que não degenere em um empenho mesquinho em “andar na linha” nem em um subjetivismo fluido e sem raiz. De quebra, uma visão mais integral do discernimento joga uma nova luz sobre o tema da vocação, ainda tão sequestrado pelo clericalismo.
2. A misericórdia experimentada
Um dos grandes legados do pontificado de Francisco, quando visto não meramente de um ponto de vista sociopolítico, mas a partir da fé, é seguramente o Jubileu da Misericórdia (2015-2016), proclamado nos 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II. A ênfase na misericórdia está ligada a um conceito de que Bento XVI e Francisco se mostram muito conscientes e que o Vaticano II chamou de “hierarquia das verdades”. A fé cristã não pode ser apresentada como um emaranhado de conteúdos, ritos e normas, em que não se vê o que é que sobressai, em que consiste o seu núcleo. É preciso deixar claro qual é o coração da fé. Nesse sentido, o jubileu foi um movimento na mesma direção que o tríptico de encíclicas de Bento XVI sobre o amor, a esperança e a fé: tanto o ano jubilar quanto a trilogia apontam o que é essencial na vida cristã: a experiência do encontro com Cristo, rosto da misericórdia do Pai. Sem essa experiência – como mostraram, entre muitos outros, Bernardo de Claraval e Inácio de Loyola – não há vida cristã.
3. A misericórdia operante
Quando, daqui a cinquenta anos, se falar sobre a crise dos refugiados de nossa década, não se poderá acusar de omissão a liderança da Igreja Católica. O tema já tinha sido tocado por Bento XVI, mas Francisco, por assim dizer, “vestiu a camisa” e usou a sua visibilidade como líder para chamar a atenção para o problema. Sua primeira viagem apostólica foi à ilha de Lampedusa, ponto habitual no trajeto de muitos refugiados em sua fuga da guerra e da fome – sua homilia na ocasião merece ser relida. Francisco também pediu que cada paróquia, convento e seminário da Europa abrisse as portas para acolher uma família de refugiados. E, na reforma da Cúria Romana, ao estabelecer o Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, nomeou-se a si mesmo como coordenador da seção dedicada aos migrantes e refugiados. Com esses esforços, Francisco nos lembrou que não são os de diferentes culturas que ameaçam a identidade cristã, mas sim aqueles que pensam que a misericórdia e a acolhida não fazem parte dessa identidade.
4. A reação às novas “heresias”
Tanto o tema do discernimento como o da misericórdia nos auxiliam a rever a nossa experiência de fé para que ela não caia nas duas armadilhas mencionadas na carta Placuit Deo, da Congregação para a Doutrina da Fé: o neopelagianismo, que confia a salvação às forças do indivíduo, e o neognosticismo, que apresenta uma salvação somente interior, não vendo significado na realidade do mundo. As páginas católicas da internet, tão empenhadas em “combater as heresias”, estão repletas de ambos os desvios. Desde o início do seu pontificado, Francisco chamou a atenção para essas posturas, mas muitos acham que se trata apenas de uma implicância com o conservadorismo católico. Não: é um problema doutrinal sério, e até mais: é um grave problema espiritual. Quem acredita que conquista a salvação com seus esforços e quem é incapaz de enxergar a presença de Deus no mundo “material” e “não-religioso” ainda não se abriu à salvação verdadeira, que é dom e encontro.
5. A atenção à Igreja universal
Essa característica do pontificado de Francisco pode ser exemplificada em três aspectos: o seu hábito de citar amplamente em seus documentos textos das conferências episcopais de diversos países e regiões; as suas nomeações cardinalícias; e as suas viagens. Francisco, como ele mesmo disse, “começou de onde Bento XVI parou”: dá predileção a visitas à Ásia e à América Latina, sobretudo a países não visitados por seu predecessor. Além disso, suas nomeações contribuíram para o necessário processo de “deseuropeização” e de “deselitização” do Colégio de Cardeais: se nos últimos conclaves estavam apenas arcebispos de grandes cidades ou membros da Cúria Romana, o conclave que elegerá o sucessor de Francisco não apenas será o primeiro em que os europeus serão menos da metade, como contará com numerosos bispos da “periferia do mundo” – por exemplo, Rosa Chávez, bispo-auxiliar (!) de San Salvador; Zenari, núncio apostólico na “martirizada Síria”, como diz Francisco; e Nzapalainga, arcebispo de Bangui, capital da República Centro-Africana, um dos países mais instáveis e pobres da África.
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Um traço do pontificado de Francisco que costuma dividir opiniões é a sua continuidade em relação ao pontificado de Bento XVI. Bem, o próprio Bento não está nem um pouco indeciso a esse respeito: ontem (12/03), publicou uma carta em que afirma uma “continuidade interior entre os dois pontificados, não obstante todas as diferenças de estilo e temperamento” – como já havia reconhecido em outras ocasiões, como no livro-entrevista O último testamento. Sem meias palavras, Bento criticou ainda “o preconceito tolo segundo o qual o Papa Francisco seria apenas um homem prático desprovido de uma particular formação teológica ou filosófica, enquanto eu seria unicamente um teórico da teologia que teria pouco entendido a vida concreta de um cristão hoje” e afirmou que seu sucessor “é um homem de profunda formação filosófica e teológica”.
É claro que se trata de uma continuidade criativa, como deve ser, levando adiante o ensinamento de seu predecessor em vez de simplesmente cristalizá-lo. Francisco dá, evidentemente, a sua própria contribuição à Igreja como aquele que a preside na caridade. Mas “interiormente”, para usar a expressão de Bento XVI, o rio que corre é o mesmo. Se Bento XVI se mostra tão à vontade com o magistério de Francisco, porque muitos dos seus fãs não conseguem enxergar a continuidade entre ambos e desconfiam da ortodoxia de Francisco? Às vezes, e falo por experiência própria, é a dureza de coração que impede de perguntar: “Será que não sou eu que estou errado? Será que não fui eu que entendi mal? Será que o que eu imagino saber sobre a doutrina católica não é um castelo de cartas, que pouco tem a ver com a fé da Igreja?” A soberba, porém, bloqueia essas perguntas: o papa é um herege, Bento deve estar gagá, 95% dos cardeais e bispos são infiéis, o povo simples e fiel de Deus tem uma formação ruim, os teólogos são uns carreiristas vendidos, mas eu – eu sou infalível.
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