Autoria:
*** Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva ***
“Escrevi essas notas por ocasião da leitura do artigo de Judith Butler na Folha de São Paulo em 20 de novembro de 2017, numa breve meditação filosófica. O texto é maior que as postagens habituais, mas penso que valha a pena sua leitura atenta e reflexão”
I. RECUO ESTRATÉGICO
Professora do departamento de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e diretora do Consórcio Internacional de Teoria Crítica, não é de se admirar que Judith Butler remodele seu discurso para torná-lo mais palatável ao ouvido sensível dos brasileiros, sobretudo após a onda de protestos causados por sua última vinda ao Brasil.
“Um passo em frente, dois pra trás”. Este é o título do livro que Vladimir Lênin publicou em 1904, e que, de certo modo, marcou sempre o modus procedendi de toda a esquerda quando pretende avançar por cima dos obstáculos.
Quando Fidel Castro assumiu o poder em Cuba em nome da democracia e contra a ditadura batistiana, em seguida, implantou a sua ditadura. Hugo Chávez fez a mesma coisa, apresentou um discurso democrático para, na sequência, impor seu totalitarismo.
Até mesmo o ex-presidente Lula fez isso. Quando tentava se eleger, nos anos 90, era rechaçado pela população. Então, com o auxílio do marqueteiro Duda Mendonça, repaginou-se, dando à luz o “Lulinha paz e amor”, que o elevou à presidência da república em 2002.
Agora, Butler segue a mesma estratégia. Reapresenta a sua teoria em recortes mais essencialistas e até moralistas, para fazê-la avançar.
II. A TEORIA DE GÊNERO BUTLERIANA
Apesar de aliviar as tintas em seu texto, qualquer pessoa que tenha tido um contato com a teoria de gênero sabe que esta transcende em muito o objetivo de atender os indivíduos que não correspondem às expectativas relativas ao seu gênero (segundo o artigo de Butler, “ao gênero atribuído no nascimento”).
Como ela mesma afirma, “meu trabalho consiste em delinear a última etapa da batalha filosófica contra a vida do impulso, o esforço filosófico de domesticar o desejo como uma instância de lugar metafísico, a luta por aceitar o desejo como princípio de deslocamento metafísico e dissonância psíquica e o esforço orientado por deslocar o desejo com o fim de derrotar a metafísica da identidade” (Subjects of desire, p. 15).
Obviamente, para ela, como o desejo não se realiza de acordo com um sujeito que lhe dê suporte, o “eu” seria apenas um discurso. Não haveria um ser por detrás da performance de gênero. Seriam estas performances, estas ações, que constituiriam a ficção do sujeito, pois esta ficção seria requerida pelo discurso que nós herdamos da metafísica da substância, discurso que, segundo ela, precisamos superar (Problemas de gênero, p. 56).
Masculinidade e feminilidade, portanto, para ela, são ações desligadas da biologia. Ela afirma, inclusive, que “a ‘presença’ das assim chamadas convenções heterossexuais nos contextos homossexuais, bem como a proliferação de discursos especificamente gays da diferença sexual, como no caso de buth (a lésbica masculinizada) e femme (a lésbica feminilizada) como identidades históricas de estilo sexual, não pode ser explicada como representação quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco elas podem ser compreendidas como a insistência perniciosa de construtos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. A repetição de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hétero bem pode representar o lugar inevitável de desnaturalização das categorias de gênero” (Problemas de gênero, p. 66).
Ademais, em diálogo com Witting, ela afirma que “a tarefa das mulheres é assumir a posição do sujeito falante autorizado e derrubar tanto a categoria de sexo como o sistema da heterossexualidade compulsória que está em sua origem. Para ela, a linguagem é o conjunto de atos, repetidos ao longo do tempo, que produzem efeitos de realidade que acabam sendo percebidos como ‘fatos’. Considerada coletivamente, a prática repetida de nomear a diferença sexual criou essa aparência de divisão natural. A ‘nomeação’ do sexo é um ato de dominação e coerção, um ato performativo, institucionalizado que cria e legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os princípios da diferença sexual” (Problemas de gênero, p. 200).
Diante disso, soa completamente retórica e maquiada a seguinte pergunta de Butler em seu artigo da Folha: “O livro (Problemas de gênero) negou a existência de uma diferença natural entre os sexos? De maneira alguma, embora destaque a existência de paradigmas científicos divergentes para determinar as diferenças entre os sexos e observe que alguns corpos possuem atributos mistos que dificultam sua classificação”.
Então, Butler admite que existe a possibilidade de uma classificação objetiva, baseada na diferença biológica dos corpos? Obviamente, trata-se, aqui, de uma ginástica retórica para desorientar os menos informados em sua teoria.
III. IDEOLOGIA? SIM.
Segundo Butler, “em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório quanto dogmático, algo que ‘tomou conta’ do pensamento das pessoas de uma maneira acrítica. Meu ponto de vista, entretanto, é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adotam como certas em seu cotidiano” (artigo para a Folha).
O conceito de gênero é crítico apenas no sentido da “teoria crítica”, quer dizer, enquanto instrumento para criticar a realidade inteira, como ela mesma reconhece neste seu texto.
Contudo, como de praxe na teoria crítica, deve-se criticar tudo, menos a metodologia crítica ou seus instrumentos metodológicos críticos como, no caso, o conceito de gênero.
Ela mesma afirma que “se a noção estável de gênero dá mostras de não mais servir como premissa básica da política feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para contestar as próprias reificações do gênero e da identidade – isto é, uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um PRÉ-REQUISITO METODOLÓGICO E NORMATIVO, senão como um OBJETIVO POLÍTICO” (Problemas de gênero, p. 25).
Em outras palavras, a noção de gênero como identidade variável deve ser uma PREMISSA, aliás, a qual ela não procura demonstrar, antes, apenas apresenta de modo dogmático. A práxis da militância de gênero, ademais, sempre foi a de fazer com que a teoria de gênero “tomasse de conta” da sociedade inteira sem que ninguém se desse conta disso, portanto, de modo acrítico.
Aliás, por que fazem tanta questão de ensinar gênero para as criancinhas? Será que não é justamente porque as mesmas não têm suficientemente desenvolvida a sua capacidade crítica?
Portanto, segundo as próprias determinações de Butler, a sua teoria de gênero cabe muito bem nos limites daquilo que ela entende por uma ideologia.
Não, quem criou a ideologia de gênero não foi Joseph Ratzinger nem muito menos Jorge Scala. O “pai” da “criança” é a Judith Butler, mesmo!
IV. ESSENCIALISMO E A FALÁCIA DA ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA
Segundo Butler, “a noção de paródia de gênero aqui definida não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem (ela está falando da própria identidade de gênero…) Esse deslocamento perpétuo constitui uma fluidez de identidades que sugere uma abertura à ressignificação e à recontextualização; a proliferação parodística priva a cultura hegemônica e seus críticos da reinvindicação de identidades de gênero naturalizadas ou essencializadas” (Problemas de gênero, p. 238).
Servindo-se da metodologia própria da teoria crítica, Butler cria uma caricatura discursiva e começa a desconstruí-la, como se estivesse desconstruindo a realidade. Na verdade, ela está tão absorvida por seu próprio discurso que crê firmemente nele, substituindo a realidade por ele.
Deste modo, atribui a homem e mulher, termos que aparecem para ela sempre entre aspas, status de identidade essencialista, naturalista, sexista, binária, heterossexista, heteronormativa, fálica, reificada etc.
Para comprovar a ficção da identidade, ela analisa os discursos sobre o masculino e o feminino como se os mesmos fossem o homem e a mulher em si.
Aqui, ela é epistemologicamente dependente da metodologia de Foucault, o qual, partindo do pressuposto que a verdade não existe, passa a rastrear a história das “verdades” para demonstrar que as mesmas são apenas a projeção de um determinado poder regulador. Isto é aquilo que ele chama de arqueologia do saber.
Ora, se quiséssemos, por exemplo, fazer a arqueologia da ideia de “lei da gravidade”, obteríamos uma infinidade de discursos contraditórios e facilmente chegaríamos à conclusão de que a “teoria da gravidade não existe, é apenas um discurso de poder”. No entanto, se você se jogar da janela, de qualquer modo, com ou sem Foucault, vai se espatifar do mesmo modo!
Em outras palavras, estamos diante de um jogo de palavras, de um embaralhamento de discursos, daquilo que a filosofia chama de falácia. A realidade continua intocada, apenas se dribla o interlocutor com um lance desconstrucionista. É aquilo que no futebol chama-se de pedalada.
Como é possível que este tipo de artifício possa convencer alguém? Bem… Como ensinou Aristóteles (tanto nos Analíticos quanto no Peri hermeneias), não é fácil conhecer a essência das coisas. Precisamos proceder a um processo abstrativo complexo, que supõe um trabalho mental consideravelmente sofisticado. A história dos discursos pode ser a história dos bem ou mal sucedidos, e dos mal ou bem intencionados, esforços por alcançar a quididade, a essência das coisas reais. Por isso, o método foucaultiano é sofístico e pode enganar.
V. SOFISTAS DE GÊNERO
Butler é adepta da subversão da identidade através de atos corporais subversivos, típicos do movimento queer, quer dizer, a atuação de performances revolucionárias que choquem aquilo que ela chama de heteronormatividade.
Outra autora americana de gênero, Joan Scott, é mais ortodoxa, do ponto de vista foucaultiano: ela pretende reescrever a história a partir da noção de gênero (Gender and the politics of history, Nova York, 1999).
Estas são as duas autoras principais. Digamos, as mais representativas dos estudos de gênero.
Contudo, existem mais de 40 teorias diferentes de gênero, todas em disputa entre si. São modos diferentes de apresentar a mesma ideia, a saber: o gênero é um construto desligado da identidade sexual, vale dizer, biológica.
Este também é um expediente da teoria crítica: colocar um grupo imenso de pessoas para criticar implacavelmente a realidade, metralhando-a em todos os sentidos possíveis, sem necessariamente preocupar-se em justificar a própria crítica.
Uma pessoa que quiser encarar toda a aquarela dos estudos de gênero poderá gastar toda a vida apenas ocupando-se de entender as picuinhas intelectuais que os diferentes ativistas nutrem dialeticamente entre si. Decerto ficará perdido nesse labirinto sem saída e, completamente intoxicado de informações contraditórias, acabará por adotar uma entre elas, trocando a realidade pelo discurso.
Isso também aconteceu nos tempos de Sócrates (cf. Platão, O Sofista). Os sofistas eram retóricos pagos pelos políticos da época para convencerem o povo das ideias destes últimos. Destruíam a base mesma do saber, negando a existência do ser e da verdade, e submetiam o povo às suas opiniões. Sócrates os resistiu, pagou o preço de sua vida por isso, mas ao fim e ao cabo, desapareceram os sofistas e prevaleceu a verdadeira filosofia.
Hoje, os críticos, os desconstrucionistas, os ideólogos de gênero são os novos sofistas, pagos pelas fundações internacionais para convencerem o povo de que não existe a verdade, o ser, a essência, e imporem o seu totalitarismo disfarçado de democracia.
Com efeito, Judith Butler veio ao Brasil financiada pela Fundação Mellon para falar de democracia em nome do Consórcio Internacional de Teoria Crítica, fundado no final do ano passado com uma verba doada pela mesma Fundação de 1,5 milhões de dólares (vide o site do próprio Consórcio).
Submetam os ideólogos de gênero à arqueologia de suas ideias e à genealogia dos poderes que estão por trás deles, rastreiem a rota do dinheiro e verão que isso nada tem de amor desinteressado à humanidade.
VI. PEDOFILIA
Butler alega que a Igreja está por trás da estigmatização social da sua teoria de gênero e se defende da acusação de corruptora de crianças acusando a Igreja Católica de ter perdido a sua autoridade moral por proteger pedófilos em seu seio.
A generalização precipitada é um tipo de falácia de que abusam estes ideólogos em sua aversão ao catolicismo. É verdade que alguns delinquentes se esconderam na Igreja e que houve quem se omitisse em sua acusação, mas a Igreja os puniu severissimamente e, sobretudo, nunca os respaldou, justificando doutrinalmente seu desvio de conduta.
Ao contrário, o movimento feminista tem expoentes que defenderam abertamente o sexo com menores, e este não é um privilégio de Shulamith Firestone (The dialetic of sex, p. 215). Há quem queira despatologizar a pedofilia ou transformá-la numa opção sexual respeitável.
Butler apela para a teoria da projeção, sugerindo que os que a acusam de favorecer a pedofilia estão apenas lançando sobre ela o próprio vexame. Na verdade, a generalização precipitada é uma falácia em qualquer direção que se a aplique e o uso deste tipo de sofisma apenas demonstra malícia ou despreparo filosófico.
VII. FILOSOFIA, VERDADE E DEMOCRACIA
Algumas pessoas que trabalham com comunicação vieram queixar-se de que os protestos contra a vinda de Butler ao Brasil apenas projetaram-na ainda mais.
Tenho a impressão de que isto, do ponto de vista filosófico, não é necessariamente assim. Quero dizer apenas que os ideólogos sempre se favoreceram do anonimato e da difusão de ideias não conferidas, exatamente como Butler diz em seu artigo.
Quem coloca a questão nestes termos assume sem percebê-lo a premissa de que a verdade e o erro são equivalentes. Acontece que a força do erro está na hegemonia. Por isso, eles necessitam impô-la para todo o mundo. Mas a força da verdade está nela mesma!
Hoje, a verdade precisa mais de homens com uma verdadeira mente filosófica que da propaganda, é ela que gera os propagandistas, os comunicadores, a cultura e tudo o mais. Foi sobre estes cânones que se erigiu a civilização ocidental e é contra eles que estes bárbaros a estão destruindo.
Uma democracia que se propusesse como alternativa à verdade, caricaturizando-a como autoritarismo, apenas seria uma ditadura disfarçada, a imposição de uma hegemonia.
Notem que a própria Butler defende a identidade de suas ideias e protesta contra falsificações. E com razão. Contudo, ela o faz apenas em benefício de sua crítica, sem submeter-se a uma autocrítica.
Como afirma Butler em seu artigo na Folha, “liberdade não é – nunca é – a liberdade de fazer o mal. Se uma ação faz mal a outra pessoa ou a priva de liberdade, essa ação não pode ser qualificada como livre – ela se torna uma ação lesiva”.
No caso, a ideologia de gênero não nos quer apenas privar da identidade, mas também da liberdade e da verdade. De fato, se ninguém é alguém, como pode ter direitos?
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