Dias atrás encontrei em uma biblioteca um livro chamado Recrutando para Cristo, de autoria do padre passionista norte-americano Godfrey Robert Poage. Trata-se de um manual para animadores vocacionais, lançado em 1950 e publicado aqui no Brasil em 1962 – o ano em que se iniciou o Concílio Vaticano II – pela Vozes. Pelo título, já dá para entrever que a mentalidade assumida pelo texto é problemática em vários sentidos.
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O animador vocacional (na mentalidade daquele tempo, o padre ou a freira que precisa conseguir mais membros para o clero diocesano ou para a sua congregação) “recruta”: tem a missão de encontrar pessoas aptas a fazer parte de um “exército” – e depois de encontrá-las, convencê-las a se alistar. E recruta “para Cristo”, ou seja, quem vive e trabalha para Cristo são os padres e religiosos. Os que não estão “aptos” para isso ou não foram “chamados” ficam sobrando: não são de Cristo, não são para Cristo.
Quando a vida leiga não é vista como vocação, cria-se um abismo entre o Evangelho e o mundo
Parecem problemas sutis, mas eles têm a capacidade de adoecer a Igreja por completo, ao tratar a vida leiga como se não fosse uma vocação, como se fosse algo de segunda categoria. Segundo essa mentalidade, a vida leiga, matrimonial, profissional é para aqueles que não conseguem ser padres ou freiras – estas são sempre vistas como a primeira opção. Porém, quando os leigos são vistos assim, sem se darem conta de sua vocação específica, cria-se um abismo entre o Evangelho e o mundo e a Igreja não cumpre a sua missão.
Por que estou falando sobre esse livro? Porque passaram-se 67 anos desde que ele foi publicado – 67 anos! – e essa mentalidade ainda está presente em nossas comunidades. Muitos animadores vocacionais continuam surdos para a realidade da vocação universal à santidade, que voltou a ser posta em destaque pelo Concílio Vaticano II – há mais de 50 anos –, e preocupados apenas com os números de seminaristas, postulantes e noviços.
O impacto nocivo dessa mentalidade não atinge apenas a missão da Igreja como um todo, mas também fere a vida de cada jovem manipulado por essa mentalidade, já que estamos falando daquilo que constitui o centro da nossa vida: a nossa relação com Deus. Eu já cheguei a ouvir um padre dizendo em um encontro vocacional onde estavam presentes meninos de 12 a 16 anos – era a primeira vez que participavam de um encontro assim – que, se eles estavam ali, é porque Deus já os tinha chamado ao sacerdócio: agora cabia a eles dizer “sim” ou recusar. Consegue perceber o estrago que isso pode causar no relacionamento deles com Deus, gerando consequências desastrosas na sua vida?
Nesse fim de semana (1º-3/12) aconteceu em Roma um congresso sobre pastoral vocacional e vida consagrada. Na mensagem enviada aos participantes do evento, o Papa Francisco apresentou três “convicções sobre a pastoral vocacional” que não podem ser esquecidas. Em primeiro lugar, ele diz: “Falar de pastoral vocacional é afirmar que toda ação pastoral da Igreja, é orientada, por sua própria natureza, ao discernimento vocacional, na medida em que o seu objetivo último é ajudar aquele que crê a descobrir o caminho concreto para realizar o projeto de vida ao qual Deus o chama”.
Uma comunidade viva sabe que cada cristão é um vocacionado
Isso é pastoral vocacional: “ajudar aquele que crê a descobrir o caminho concreto para realizar o projeto de vida ao qual Deus o chama”. Trata-se de acompanhar todos os fiéis, com uma visão aberta “que proponha e valorize convenientemente todas as vocações dentro do Povo de Deus”, como escreve Francisco. O resto é departamento de RH para o clero. Às vezes repetem-se slogans que dizem que de toda comunidade deve sair pelo menos uma vocação. Bem, uma comunidade que tem apenas um vocacionado já está morta há muito tempo: a comunidade viva sabe que cada cristão é um vocacionado.
Por isso, o papa diz que “o serviço vocacional deve ser visto como a alma de toda a evangelização e toda a pastoral da Igreja”. Toda a pastoral está em função de gerar cristãos que compreendam a sua vocação e vivam a sua missão no mundo: a catequese, a pastoral familiar, a pastoral litúrgica e, especialmente, a pastoral juvenil. É a segunda convicção que Francisco expressa: “Pastoral vocacional e pastoral juvenil têm que andar de mãos dadas”.
O papa diz que a pastoral juvenil só será “verdadeiramente formativa” se estiver “aberta à dimensão vocacional”. A dimensão vocacional não é algo a se propor como complemento da formação dos jovens, como uma cereja no bolo, mas é o seu conteúdo: viver uma existência dialogal, ouvindo a voz de Deus-Amor em minha vida e aprendendo a responder às realidades que me circundam a partir da experiência da minha relação com Deus, como filho, como remido, como ungido.
Por fim, o papa destaca como terceira convicção a importância da oração na pastoral vocacional. Por um lado, trata-se também de formar para a oração, “criar ambientes em que seja possível escutar o chamado do Senhor”: um jovem que não ora, ou seja, que não dialoga com Deus, é incapaz de responder à própria vida a partir da sua fé. Por outro, Francisco cita Mt 9, 38: “Pedi ao senhor da messe que envie operários para a colheita”. E a messe, como fica claro, não é o seminário nem o convento – é o mundo, chamado ele também a ser, através do Espírito que habita e age em nós, o jardim de Deus.
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