Há 27 anos, São João Paulo II publicou um dos seus textos mais importantes no âmbito da doutrina social da Igreja, a encíclica Centesimus annus. Nela, o papa polonês afirmou que “a Igreja encara com simpatia o sistema da democracia” (n. 46). João Paulo II fez, porém, um alerta que seria retomado várias vezes por ele mesmo e por seu sucessor, Bento XVI: a delicada relação entre democracia e verdade, diante do relativismo.
“Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo cético constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos aqueles que estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos”, escreveu o papa.
Foi aqui que João Paulo II deu o alerta: “A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”.
O papa voltaria à questão em duas outras encíclicas (se quiser ver mais citações, vá até o fim do texto)*, reiterando ser necessário à própria democracia o reconhecimento de determinados valores que não podem estar sujeitos ao voto da maioria – valores não negociáveis. Em uma primeira leitura, quem imediatamente associa João Paulo II e Bento XVI ao conservadorismo não veria nesse alerta nada mais do que uma tática para defender a manutenção da legislação sobre o aborto e a família “tradicional”, por exemplo. Mas a questão levantada é bem mais abrangente e refinada do que isso.
Pondo a questão
João Paulo II e Bento XVI tiveram a experiência de viver sob o totalitarismo, quer o de matriz nazista – caso de ambos –, quer o comunista – para o papa polonês. Nessa condição, sabiam muito bem que a vontade da maioria não pode ser o referencial absoluto em uma democracia. Eles não esqueceram que muitos regimes totalitaristas e antidemocráticos tiveram a sua origem em movimentos com amplo apoio popular – e com esse apoio espezinharam repetidamente a dignidade humana.
A questão que fica, então, é: qual seria esse referencial inegociável? É possível defender o consenso em torno de algum valor absoluto? Esse foi basicamente o sentido da pergunta que um jornalista fez a Bento XVI em 2008, no voo que o levou em sua visita aos Estados Unidos: “Vossa Santidade pensa que uma instituição multilateral como a ONU pode salvaguardar os princípios considerados ‘não negociáveis’ da Igreja católica, ou seja, os princípios fundados sobre a lei natural?”
Bento não hesitou em responder que considera que “é precisamente esta a finalidade fundamental da ONU: que salvaguardem os valores comuns da humanidade, sobre os quais se assenta a convivência pacífica das nações”. Para ele, “o fundamento da ONU” é exatamente “a ideia dos direitos humanos, dos direitos que expressam valores não negociáveis, que precedem todas as instituições e são o fundamento de todas elas”.
Direitos humanos e lei natural
Esse paralelo que Bento XVI traçou entre o antigo conceito de “lei natural” e o conceito mais moderno de “direitos humanos” não era novo no magistério dos papas. Em 1998, São João Paulo II já tinha dito que “a temática dos direitos humanos encarna as antigas instâncias da doutrina do direito natural”.
Bento voltou ao tema em 2009, dizendo que “os direitos humanos se tornaram o ponto de referência de um ethos universal compartilhado pelo menos a nível de aspiração pela maior parte da humanidade”. Na Centesimus annus, João Paulo II já tinha explicitado essa relação triangular entre a democracia, a necessidade do reconhecimento de valores inegociáveis e o consenso em torno dos direitos humanos.
“Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de ‘segurança nacional’, assistimos hoje à prevalência, não sem contrastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas exatamente por isso é necessário que os povos que estão reformando os seus regimes deem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos” (n. 47), escreveu o papa polonês.
Verdade e dignidade humana
Diante da questão do lugar da verdade no debate público, muitas vezes parece que somos obrigados a optar dentro de um cenário binário (como acontece com várias outras questões): ou relativismo ou fundamentalismo. Parece não haver uma terceira opção. Uns aderem a uma “lista” de verdades e acreditam que o seu dever é impô-las sobre os outros, enquanto outros afirmam não existir um ponto de referência absoluto sobre o que é bom – deixando essa decisão para a vontade da maioria.
Temos visto, porém, que a vontade da maioria não pode ser o critério absoluto do modo como uma sociedade é dirigida. Quem diz que “as minorias têm que se curvar às maiorias”, do contrário que “se adequem ou simplesmente desapareçam”, se mostra disposto a atacar a dignidade humana daqueles que pertencem às minorias. Uma democracia sem um ponto de referência ético inegociável não é capaz de defender a vida das minorias – ou melhor, não será capaz de defender a vida de ninguém a não ser a sua – e certamente fará do tema da “defesa da vida” apenas um clichê eleitoreiro.
Ao mesmo tempo, como apontaram João Paulo II e Bento XVI, não é preciso ser fundamentalista ou proselitista para defender o espaço da verdade no debate público – aliás, pelo contrário. Para o fundamentalista, aquilo que ele chama de verdade é uma ideologia pronta para ser brandida com o fim de atacar os outros, repleta de pontos cegos determinados por seus interesses de poder. Para um cristão, o Logos – a razão, a verdade, o sentido – é o Amor. O cristão sabe que não pode haver contradição entre a verdade intuída pela experiência humana e a verdade revelada por sua fé. Sabe também que a verdade só pode se desvelar na relação, na comunhão. Consequentemente, se uma verdade espezinha a dignidade humana, não pode ser verdade.
Esse é o caminho que percorrem também aqueles que não creem, quando mesmo sem um fundamento transcendente explícito reconhecem a inviolabilidade da dignidade humana. Veem a verdade dessa dignidade porque amam. Foi essa a experiência que, depois do rastro de destruição da II Guerra Mundial, deu origem à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Através de um olhar que reconhece o valor do outro, crentes e não-crentes possibilitam uma sociedade que, sendo verdadeiramente democrática, assume como verdade a dignidade humana de cada pessoa, reconhece os direitos subjacentes a essa dignidade e luta pela defesa da vida de todos.
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*Em 1993, na encíclica Veritatis splendor, João Paulo II disse que “as normas morais universais” constituem “o fundamento inabalável e a sólida garantia de uma justa e pacífica convivência humana, e, portanto, de uma verdadeira democracia, que pode nascer e crescer apenas sobre a igualdade de todos os seus membros, irmanados nos direitos e deveres. Diante das normas morais que proíbem o mal intrínseco, não existem privilégios, nem exceções para ninguém” (n. 96).
Dois anos depois, na Evangelium vitae, referiu-se novamente a “um relativismo que reina incontestado” quando “o próprio ‘direito’ deixa de sê-lo, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Deste modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo” (n. 20).
Ele considerou o “consenso quase universal sobre o valor da democracia” um “positivo ‘sinal dos tempos’”, mas alertou para a necessidade de que a democracia encarne valores “fundamentais e imprescindíveis”, nomeadamente “a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis e a assunção do bem comum como fim e critério regulador da vida política”. João Paulo II lembrou ainda que “nos próprios regimes de democracia representativa, de fato, a regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra vazia” (n. 70).
Bento XVI voltou ao tema, defendendo que “o relativismo moral debilita as obras da democracia que, por si mesma, não é suficiente para garantir a tolerância e o respeito entre os povos” e recordando que “a história demonstra com grande clareza que as maiorias podem errar”, de modo que “a maioria de um momento” não pode ser “a fonte última do direito”.
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